Essa é a história de uma arte feita de tecidos, gestos e sensibilidade.
Ela se inicia há quase uma década, momento em que Sonia Guggisberg passou a dedicar-se à construção de uma obra que se estrutura na dobra de tecidos. Em seu trabalho, a matéria consistentemente torna-se a própria superfície , que ganha corpo na manipulação de planos maleáveis e monocromáticos que, por sua vez, se submetem a serem dobrados, movimentados, esticados.
Quando começou esse percurso, em 1990, a artista pintava telas que, desprovidas de chassis eram então rasgadas, perfuradas, manipuladas. Gradativamente, a pintura foi suspensa e as superfícies tornaram-se laboratórios monocromáticos de gestualidade, criando um sentimento de espaço , reminiscente a aquele gerado pela obra de Lúcio Fontana. Tal como Fontana, Guggisberg cria uma subjetividade a partir de um conceito espacial. Através de uma ação, as superfícies perdem sua condição plana para se criar em ondulações de dimensão e poética surpreendentes.
Desdobrando essa noção, como em uma miríade de gestos que vão incorporando tecidos e gerando inusitados volumes, Sonia Guggisberg partiu para a manipulação de novos materiais.
Primeiro foram os tecidos leves e as lonas, que eram iniciados em um ritual de construção e geometrização, remetendo indiretamente às heranças construtiva e neo-concreta da arte brasileira. A obra de Guggisberg, no entanto, apropria-se desse plano quase geometrizado para reestrutura-lo e, assim, subverte-lo. Em seus universos de tecidos, a artista atesta para uma impossibilidade: a geometrização não se consuma pois é ela a própria organicidade e instabilidade, emblemáticas de um gesto humano, que faz brotar suas formas.
Nessas séries, a artista às vezes envolvia os tecidos em caixinhas acrílicas, construindo uma poética de fragilidades. Protegidos por uma redoma transparente, os tecidos, corpos de dobras, eram aparentemente poupados de sua fragilidade inerente, salvos da efemeridade intrínseca do ato humano que os moldou.
Posteriormente, Guggisberg utilizou telas de nylon, moldadas e fixadas diretamente às paredes, sem qualquer moldura, apoio ou suporte. Tecidos etéreos e translúcidos, que refletem a luz e se curvam à menor gestualidade e manipulação, as telas pareciam dançar um balé delicado de formas e luminosidades.
Nesse caso, a obra se construía como um comentário sobre organicidades e levezas. Parecia se imbuir do espírito de um sopro que faz gerar o corpo etéreo, algo que retém a beleza de uma bolha de sabão .
Nas séries mais recentes, a artista utiliza feltros, que são feitos de lã de carneiro prensada. Na história da arte contemporânea, o uso do feltro alude à arte conceitual do alemão Joseph Beuys. O artista, que carregava a arte de sentidos sociais, políticos, pessoais e espirituais, utilizava o feltro como símbolo de calor humano. Atribuía-lhe uma sensação de abrigo, proteção e segurança, além de um poder redentor e curativo.
Ao contrário do artista Alemão, Sonia Guggisberg escolhe o feltro por suas características puramente físicas, materiais. Mais pesado, encorpado e com característica de máxima opacidade, o feltro reflete completamente a luz, ele se torna uma massa densa e compacta, oferecendo-se, sem truques ou ilusões, à construção de novos corpos de dobras.
As séries em feltro contêm cores compactas. São vermelhos, pretos, azuis. Ou simplesmente crús, deixando transparecer as impurezas de suas superfícies .
Esses corpos, compactos no uso do material e das cores, são marcados justamente pela vulnerabilidade. Mais uma vez a artista nos lança em um impasse: a opacidade do feltro não é capaz de estruturar um corpo que se torna matérico pela ação fugaz de um gesto.
É da gestualidade que suas esculturas moles herdam forma e corpo. Puro acaso que se torna fato consumado ao ser repetido decisoriamente na construção de cada uma das obras.
Na arte ocidental, a incorporação do acaso, foi utilizada por muitos artistas a fim de empurrar a experimentação na direção de novos limites como meio de alcançar sensibilidades além da razão. Referências da vanguarda norte-americana, o coreógrafo Merce Cunningham e o músico John Cage, utilizaram noções do zen budismo para decisões de sequencias de composição coreográfica e musical a serem realizadas.
Sonia Guggisberg incorpora uma gama múltipla de gestos fortuitos à superfície de seus tecidos para injetar-lhes humanidade. Eles se tornam, na ilusão da arte, entes vivos. Em suas sutis entranhas, as obras aludem às próprias rugas e desgastes do tempo sobre o corpo; falam da fragilidade da existência; comentam a sensualidade, a delicadeza e a aparente precariedade que remetem às multifacetadas sensibilidades do feminino , impregnada na própria escolha do tecido como meio, que, milenarmente, implica aspectos de domesticidade. Tornam-se manifestos da mão humana que através da arte, cria espaços circunscritos de vida.
Katia Canton é PhD em Artes pela Universidade de NY,
Curadora do Museu de Arte Contemporânea de SP.